Educação Superior Comentada | A (im)possibilidade de transformação de mantenedoras sem fins lucrativos em entidades com fins lucrativos

Ano 5 - Nº 28 - 30 de agosto de 2017

Na edição desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, avalia, à luz do Direito Civil, o procedimento que deve ser adotado por mantenedoras inicialmente registradas como organizações sem fins lucrativos que desejam modificar sua personalidade jurídica para entidades com fins lucrativos. Fagundes também chama a atenção para o fato de que, não obstante o entendimento e procedimentos adotados, há que se observar, em qualquer situação, as normas vigentes de Direito Tributário

30/08/2017 | Por: Gustavo Fagundes | 8511

Em tempos há muito idos, as instituições de ensino superior particulares somente podiam ter como mantenedoras entidades sem fins lucrativos, ou seja, essencialmente fundações e associações civis.

Posteriormente, com as modificações na legislação, tornou-se possível que as instituições de ensino superior tivessem como mantenedora pessoas de direito privado organizadas sob qualquer das formas admitidas em direito, como estipulado pelo artigo 7°-A da Lei n° 9.131/1995, incluído no referido diploma legal pelo artigo 9º da Lei n° 9.870/1999, com o seguinte teor:

"Art. 7º A. As pessoas jurídicas de direito privado, mantenedoras de instituições de ensino superior, previstas no inciso II do art. 19 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, poderão assumir qualquer das formas admitidas em direito, de natureza civil ou comercial e, quando constituídas como fundações, serão regidas pelo disposto no art. 24 do Código Civil Brasileiro.”

A partir dessa modificação, surgiram, imediatamente, os questionamentos acerca da possibilidade de transformação das mantenedoras sem fins lucrativos em entidades com fins lucrativos.

Apesar de a ABMES ter formalizado consulta expressa à Secretaria da Receita Federal acerca dessa possibilidade e das consequências de ordem tributária eventualmente decorrentes da pretendida transformação, respondida pela Solução de Consulta COSIT n° 7, de junho de 2002, o tema ainda suscita algum controvertimento, especialmente no que pertine às associações.

Com efeito, em relação às fundações, o tema é absolutamente incontroverso, sendo inviável, sob o ponto de vista jurídico, sua transformação em entidade com fins lucrativos.

Essa impossibilidade decorre, essencialmente, do fato de serem as fundações originadas de dotação especial de bens livres, destinados por seu instituidor, para consecução dos fins a que se destina, nos termos do artigo 62 da Lei n° 10.406/2002 (Código Civil):

“Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.”

Registre-se que, na essência, esse dispositivo é o mesmo daquele contido no artigo 24 do Código Civil anterior (Lei n° 3.071/1916):

“Art. 24. Para criar uma fundação, far-lhe-á seu instituidor, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que a destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.”

Desse modo, surgindo a fundação de uma dotação de bens especificamente constituída por seu criador, para finalidades específicas, não há que se falar em posterior modificação de sua natureza jurídica, motivo por que é evidente que, neste caso, não é possível se falar em transformação de fundação em entidade com fins lucrativos.

Nesse contexto, a resposta então apresentada pela Secretaria da Receita Federal se mostrava absolutamente precisa ao apontar a impossibilidade de transformação de fundação em sociedade:

“23. Assim, entende-se que a reforma estatutária para transformação de fundação em sociedade civil ou mercantil, com fins lucrativos, é ato jurídico eivado de nulidade.

24. A uma porque o fim lucrativo viola, em regra, a disposição de vontade do instituidor, vez que as fundações buscam fins ideais (recreativos, culturais, educacionais, etc.).

25. As duas porque numa fundação os lucros eventualmente obtidos revertem em prol dela própria, não havendo possibilidade de distribuição de lucros, ato imanente às sociedades lucrativas.

26. A três porque é da essência das sociedades civis ou mercantis a possibilidade de devolução de patrimônio aos sócios dissidentes, enquanto o patrimônio das fundações se encontra implicitamente gravado com cláusula de inalienabilidade.”

O controvertimento, surgido naquela época e com respostas ainda nebulosas, diz respeito à possibilidade de transformação de associação em sociedade, ou seja, de entidade sem fins lucrativos para uma pessoa jurídica com fins lucrativos.

Convém registrar que, nos termos do Código Civil de 2002, as associações são fruto da união de pessoas, organizadas para fins não econômicos, nos termos de seu artigo 53:

“Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.”

Alguns estudiosos defendiam ser possível tal transformação, argumentando que essas pessoas (associados) poderiam, no livre exercício de seu arbítrio, modificar a finalidade da entidade, inicialmente criada sem fins lucrativos.

Outros estudiosos, por seu turno, entendiam não ser possível a transformação, justamente pelo fato de as associações nascerem como forma de organização para fins não econômicos, não sendo possível a modificação de sua finalidade originária.

Segundo esses estudiosos, o procedimento correto, no lugar da transformação, seria a extinção da associação, com a criação de uma sociedade, observando, assim, o disposto no artigo 18 do Código Civil de 1916, vigente na ocasião da edição da Lei n° 9.870/1999:

“Art. 18. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos, estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou aprovação do Governo, quando precisa.

Parágrafo único. Serão averbadas no registro as alterações, que esses atos sofrerem.”

Registro que essa disposição foi mantida, em sua essência, no artigo 45 do Código Civil de 2002:

“Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.”

Nesse contexto, portanto, o correto seria a promoção da baixa da associação civil no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e a inscrição, na Junta Comercial, da sociedade civil, que nasceria, portanto, como uma nova pessoa jurídica.

Curioso registrar que a prefalada resposta apresentada pela Secretaria da Receita Federal à ABMES, em 2002, mostra-se absolutamente confusa neste particular, em alguns trechos registrando ser possível a transformação de associação em sociedade civil para, no trecho seguinte, contradizer a informação anterior, manifestando-se pela impossibilidade da referida transformação, conforme demonstro abaixo:

“Ementa: INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. FUNDAÇÃO. ASSOCIAÇÃO CIVIL. TRANSFORMAÇÃO EM SOCIEDADE CIVIL OU COMERCIAL COM FINS LUCRATIVOS. DEVOLUÇÃO DE CAPITAL. AVALIAÇÃO DE PATRIMÔNIO.

É impossível juridicamente a transformação de instituição de ensino superior que adote a forma jurídica de fundação em sociedade civil ou comercial com fins lucrativos.

Admite-se a transformação de instituição de ensino superior que adote a forma jurídica de associação civil em sociedade civil com fins lucrativos.

Considerando que o art. 18 do Código Civil estabelece que a existência de pessoa jurídica se dá com o registro de seus atos no órgão competente, não é possível a transformação de associação civil em sociedade mercantil, visto que há que se promover a baixa de seus atos no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e subseqüente inscrição na Junta Comercial, constituindo-se, portanto, outra pessoa jurídica.”.

Adiante, ainda no corpo da resposta então encaminhada, a Secretaria da Receita Federal repete o registro contraditório, manifestando-se pela possibilidade da transformação em um parágrafo e pela impossibilidade no instante seguinte:

“31. Não há, no ordenamento jurídico, vedação expressa à transformação de associação civil em sociedade civil com fins lucrativos, ressalvando-se a necessidade, no procedimento, de manifestação das autoridades competentes.

32. Considerando que o art. 18 do Código Civil estabelece que a existência de pessoa jurídica se dá com o registro de seus atos no órgão competente, não é possível a transformação de associação civil em sociedade mercantil, visto que há que se promover a baixa de seus atos no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e subseqüente inscrição na Junta Comercial, constituindo-se, portanto, outra pessoa jurídica.”

No caso das associações, portanto, apesar da confusão presente na resposta formulada pela Secretaria da Receita Federal, a solução técnica mais adequada seria, com base nas disposições do Código Civil, a baixa da associação no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, seguido da inscrição da sociedade nascente perante a Junta Comercial.

Esse texto, ressalte-se, busca tratar o tema da (im)possibilidade de transformação de fundações e associações em sociedades exclusivamente sob o prisma do Direito Civil, sendo certo que, não obstante o entendimento e procedimentos adotados, há que se observar, em qualquer situação, as normas vigentes de Direito Tributário, sempre sob a orientação de profissional especializado nesta importante área do conhecimento jurídico.

Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.

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